Rodrigo Martins - Revista CartaCapital
Paraisópolis, localizada no rico bairro do Morumbi, zona sul de São Paulo, é considerada uma favela privilegiada. Boa parte dos seus 80 mil habitantes, segundo o último Censo do IBGE, não precisa enfrentar longos trajetos para chegar ao trabalho. As oportunidades de emprego estão na vizinhança abastada. Ao redor da favela, uma extensa rede de restaurantes, shoppings, salas de cinema, hipermercados, parques, casas de espetáculo.
Os moradores de Paraisópolis, contudo, não se sentem tão privilegiados assim. “Ninguém tem dinheiro para frequentar esses lugares. Quando muito, vai de vez em quando ao cinema. A maioria prefere pagar 1 real pelo DVD pirata e ver um filme por aqui mesmo”, comenta Juliana Oliveira, 24 anos, supervisora de um telecentro da favela e estudante de Gestão Ambiental da Universidade Bandeirantes (Uniban). “Diversão fora da favela é privilégio.”
Nem por isso ela se queixa de morar na segunda maior favela de São Paulo, atrás apenas de Heliópolis, com uma população estimada em 120 mil habitantes. “Aqui temos quase tudo. Supermercados, farmácias, academias de ginástica, pizzarias, bares com música ao vivo, lan house e até um parque de diversões”, comenta Juliana, sorriso orgulhoso. “E tudo isso construído pelos próprios moradores, que criaram pequenos comércios e progrediram. Está vendo aquele supermercado?”, aponta. “Faço as minhas compras do mês ali. É praticamente o mesmo preço de um hipermercado e economizo uns 30 reais que gastaria de táxi para trazer as compras até em casa.”
Paraisópolis exemplifica uma tendência apontada por arquitetos e urbanistas de renome. Em uma cidade agredida pelo trânsito e com escassez de espaços públicos de convivência, a população naturalmente orienta-se para a vida de bairro. “Aquilo que os urbanistas e os políticos não foram capazes de fazer, isto é, uma mistura de residências e escritórios, serviços e verde, os cidadãos construíram sozinhos”, afirma o arquiteto italiano Massimiliano Fuksas, autor, entre outros projetos, do Centro da Paz em Jafa, Israel. “Este espaço (o bairro) foi promovido para abrigar o tempo livre e a cultura de seus habitantes e promovido ao velho e eterno conceito de ‘vilarejo’”, completa Fuksas, em artigo publicado na edição 577 de CartaCapital.
A opinião é compartilhada pelo antropólogo francês Olivier Mongin, que narrou sua experiência ao desbravar São Paulo recentemente, após ser “iniciado” por paulistanos. “Não vi uma Trinidad, uma Kinshasa ou um Cairo em São Paulo. Vi parques, jardins, espaços abandonados, pichações, muros sem publicidade, tive a oportunidade de ir a áreas industriais próximas do centro. São Paulo se faz de bairros múltiplos e variados, nos quais sentimos uma forte autonomia.”
A existência no bairro, contudo, não garante qualidade de vida para a maioria da população. Na cidade que concentra isoladamente 12% do PIB brasileiro, a geografia de oportunidades é extremamente desigual e perversa. O distrito de Moema, que abriga a Vila Nova Conceição, bairro com o metro quadrado mais caro de São Paulo, possui uma renda per capita média de 5,5 mil reais e um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,961, ---superior ao de países como Suíça, Dinamarca e Estados Unidos. Mas 90% da população paulistana possui condições de vida consideradas baixas ou muito baixas. É o caso dos moradores do Jardim Helena, na zona leste, região severamente castigada pelas recentes enchentes do rio Tietê. Com uma população de 124,9 mil habitantes, o distrito possui uma renda média de 584 reais e um IDH inferior ao de países como Gabão e Sri Lanka.
Para especialistas, a falta de planejamento urbano e a ausência de espaços públicos de lazer, cultura, educação e esporte agravam o problema. “Poucos bairros concentram a maioria das oportunidades de trabalho. E é em torno deles que também estão concentrados os equipamentos públicos”, afirma o arquiteto e urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Polis. “A vivência de bairro é uma experiência muito diferente nas diversas regiões da cidade. Quem mora na periferia e perde de duas a quatro horas se deslocando para o trabalho tende a ficar enclausurado em casa diante da tevê ou entretido em afazeres domésticos. Até porque, para ter acesso às opções gratuitas de lazer e cultura, ele teria de voltar a percorrer longas distâncias. Por vezes, a rua é o único espaço de convivência, mas, mesmo assim, um ambiente precário e sem segurança.”
O Movimento Nossa São Paulo possui um banco de dados que comprova o desequilíbrio de oportunidades. Das 31 subprefeituras da capital paulista, apenas quatro (Sé, Pinheiros, Lapa e Vila Mariana) concentram 50% dos postos de trabalho. Somadas, 14 outras subprefeituras (como Perus e Cidade Tiradentes) possuem apenas 10,6% dos empregos disponíveis na cidade. Não é tudo. Enquanto os bairros de três subprefeituras concentram 44% dos cinemas da cidade, 13 subprefeituras possuem uma participação próxima de zero. Em relação à distribuição dos equipamentos públicos, a discrepância permanece. Treze subprefeituras possuem uma participação inferior a 1% dos equipamentos culturais. Oito não possuem equipamentos esportivos gratuitos.
“Não causa surpresa que 57% da população paulistana demonstre interesse em abandonar a cidade, numa recente pesquisa de satisfação feita pelo Ibope e encomendada por nós”, afirma o empresário Oded Grajew, secretário-executivo do Movimento Nossa São Paulo. “E o pior é que não temos condições de avaliar se o poder público está investindo para reverter essas disparidades. Há três anos, solicitamos à prefeitura o orçamento destinado a cada distrito ou subprefeitura, para avaliar se os investimentos estão de acordo com a necessidade da população. Mas até agora eles não divulgaram isso.”
Os problemas de mobilidade na capital paulista – que registra congestionamentos de até 293 quilômetros e obriga os paulistanos a perder, em média, 2h40 diariamente no deslocamento entre a casa e o trabalho – não apenas explicam a opção de muitos pela vida de bairro como o crescimento caótico e desigual da cidade. O urbanista Cândido Malta Campos Filho, professor da FAU-USP, lembra que a elite paulistana abandonou o centro histórico da cidade justamente quando os congestionamentos na região passaram a comprometer a qualidade de vida dos moradores. “Os ricos e a classe média que viviam por lá começaram a ocupar a área do centro expandido. O eixo de centralidade deslocou-se para a Paulista, e continua mudando. Boa parte das grandes empresas transferiu-se para a avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, na região do Brooklin, e essa mudança de centralidade continua em curso”, diz.
O fenômeno veio acompanhado de um efeito perverso: a periferização da cidade. “Normalmente, quando a classe média sai do centro para fugir do trânsito, o centro passa a ser ocupado pelos mais pobres. Foi o que aconteceu em várias cidades americanas, como Houston e São Francisco. Em São Paulo, não”, afirma o urbanista. “Para efeito de especulação imobiliária, os antigos proprietários preferem deixar os imóveis do centro vazios a vendê-los, porque acham que podem ganhar mais quando houver investimentos para a recuperação das áreas degradadas da região. Como consequência, os pobres veem-se obrigados a viver na periferia, muitas vezes em áreas de risco, como encostas de morros, várzeas de rios, áreas de mananciais, em regiões sem infraestrutura de saneamento, onde o poder público tem de fazer tudo a partir do zero.”
Para quem pode fugir do trânsito e vive num bairro bem estruturado, circular- pela cidade e desbravar novos territórios não faz tanta falta. “Antes, eu só saía do Tatuapé para ter acesso a boas opções gastronômicas. Agora, já há bons restaurantes por aqui mesmo. Estão mais raras as minhas andanças por São Paulo”, afirma Anselmo Neves, 44 anos, dono de uma pizzaria e do badalado restaurante Bacalhoeiro, frequentado pelos moradores dos prédios de alto padrão que se multiplicaram pelo bairro na última década. “Demoro cinco minutos para chegar ao trabalho e me viro muito bem por aqui. Consegui realizar o sonho da maioria dos moradores desta região: fugir do trânsito da Radial Leste e da Marginal do Tietê”, comemora Neves, nascido e criado no Tatuapé. Povoado por imigrantes portugueses, italianos, espanhóis e sírios, o bairro cresceu com o progresso dos pequenos comerciantes da região e, recentemente, após a instalação dos shoppings Anália Franco e Metrô Tatuapé, passou a abrigar empreendimentos imobiliários grandiosos, com apartamentos que chegam a custar mais de 4,5 milhões de reais. Vários artistas e jogadores de futebol fixaram residência por lá.
Para a maioria da população, a possibilidade de morar e trabalhar no mesmo bairro não passa de um sonho. “A cidade possui 11 milhões de habitantes, mas na realidade está inserida numa grande malha urbana com mais de 20 milhões de moradores. Dada essa característica, é natural a existência de uma estrutura policentrada, com vários núcleos aparentemente autônomos, com uma rede de serviços locais”, afirma o urbanista Jorge Wilheim, que foi secretário de Planejamento Urbano da cidade na gestão da prefeita Marta Suplicy. “Mas não dá para viver recluso em um único bairro. São poucos os profissionais que podem escolher o local de trabalho. A grande maioria dos assalariados não tem escolha. Trabalha onde há oferta de emprego.”
Wilheim destaca ainda que a maioria dos serviços é oferecida à população pela iniciativa privada, e não pelo poder público, que dispõe de poucos e mal distribuídos equipamentos de lazer, educação e cultura. “Em praticamente todas as regiões de São Paulo, há bares, restaurantes, comércio local e shoppings, agora- -convertidos na praça moderna, onde as pessoas se encontram. Mas isso tudo é regido pela lógica do consumo. Usufrui quem pode pagar. Alguns lugares são inacessíveis para pedestres, só entram carros, como é o caso do Shopping Cidade Jardim, na beira da Marginal do Pinheiros.”
Para o arquiteto Marcos Acayaba, professor do Departamento de Projetos da FAU-USP, a substituição da praça pelo shopping center como ponto de encontro e troca de experiências é mais um sinal da falência de políticas públicas. “Em um parque, o rico e o pobre têm a possibilidade de se encontrar, de trocar experiências, de interagir. O espaço privado seleciona o público pela renda”, afirma. “Mas a convivência entre não iguais é muito mais rica. Não consigo entender a opção do setor imobiliário de investir em lugares exclusivistas, em condomínios fechados em si mesmos, em cidadelas fortificadas que supostamente oferecem tudo ao morador. Quando inauguraram esse empreendimento do Parque Cidade Jardim, muitas pessoas vieram dizer: “Puxa, que legal. Dá para trabalhar, morar e se divertir no mesmo lugar”. E eu pensando: mas qual é a graça de viver numa prisão de luxo?”
O Parque Cidade Jardim abrange um condomínio de nove torres residenciais e três prédios comerciais, incorporado pela imobiliária JHSF. Além do shopping homônimo, está prevista a construção de um spa e de um hotel. O complexo possui os apartamentos mais caros de São Paulo. Uma cobertura de 1,7 mil metros quadrados pode custar 18 milhões de reais. Apesar do preço, não parecem faltar interessados em adquirir unidades com vista privilegiada para o poluído rio Pinheiros. O desconforto da coexistência com uma favela vizinha já foi contornado. A empreiteira ofereceu dinheiro para dezenas de famílias saírem do local. E uma violenta ação de despejo da Polícia Militar, com uso de bombas de efeito moral e tratores, se encarregou de remover uma extensão da favela Real Parque, também próxima do condomínio de luxo.
“A iniciativa privada não está errada em oferecer esse tipo de empreendimento nem de investir na estruturação de bairros para quem possui poder aquisitivo mais elevado”, ressalva Kazuo Nakano, do Instituto Polis. “Mas o poder público precisa entender que a iniciativa privada nem sempre se move de acordo com o interesse público. E é preciso garantir o acesso da população a todos os benefícios que a cidade pode oferecer.” Como exemplo cita Paraisópolis: “A favela está bem localizada, mas a população não tem acesso às opções de cultura e lazer, porque são quase todas pagas. Se eles se voltam para a vida dentro da favela, não é por uma opção, e sim por necessidade”.
A jovem Elizandra Cerqueira, 21 anos, voluntária da associação de moradores de Paraisópolis, confirma a falta de opções de lazer e cultura gratuitos. “Somente no fim de 2008 inauguraram na favela um Centro Educacional Unificado (CEU), que deixa a população usar a piscina, as quadras e o parquinho das crianças”, comenta. “Antes disso, não tinha nada. Só o Playzópolis, a nossa versão modesta do PlayCenter.” O parque de diversões possui roda-gigante, carrinho de bate-bate, barco viking e a popular lanchonete “McDouglas”. O ingresso para cada brinquedo custa 2,5 reais.- “Para quem não é mais criança, a diversão são as rodas de samba e as casas de forró. Vem gente até de outros bairros. E o preço cabe no bolso”, comenta.
Outros bairros, como o Jardim Pantanal, no distrito Jardim Helena, zona leste, possuem menos opções. “Para ir ao cinema, temos de ir até o shopping Itaquera ou Tatuapé, nenhum deles a menos de 50 minutos daqui. Quase ninguém vai, porque o ingresso é caro e também tem o custo da condução. Os que não estão desempregados trabalham longe. Demoram duas, três horas para chegar ao trabalho. Quando voltam para casa, estão esgotados. Ficam na frente da tevê”, comenta o líder comunitário Ronaldo Delfino de Souza, do Movimento pela Urbanização e Legalização do Pantanal (Mulp). “No fim de semana, algumas entidades privadas, como o Instituto Alana, oferecem opções de lazer e cultura, mas é pouco diante da demanda. Quem se anima a sair de casa tem dois destinos certos: o bar ou a igreja.”
O Pantanal é um dos bairros mais atingidos pelas inundações do rio Tietê. Desde 8 de dezembro, quando uma enchente castigou diversos bairros da região, muitas ruas- continuam alagadas e os moradores sofrem com a ameaça de despejo iminente. “Uma das raras opções de lazer oferecidas pelo poder público por aqui é o CEU Três Pontes, no Jardim Romano. Mas mesmo isso nós perdemos. A escola continua ilhada pelas inundações”, emenda Souza.
“Para quem não mora em bairros abastados ou em condomínios de luxo, fechados em si mesmos, a solução é a mobilidade plena”, defende a urbanista Raquel Rolnik, professora da USP e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada. “É natural que as pessoas tentem se proteger nos bairros em que vivem, especialmente se para chegar ao local de trabalho ou estudo elas perdem muitas horas paradas no trânsito. Mas a riqueza da vida urbana está na heterogeneidade, nas possibilidades de convivência e trocas culturais entre diferentes grupos sociais, com diferentes estilos de vida e modos de pensar.”
Para a urbanista, o risco de uma aposta irrefletida na vivência de bairros autônomos ou fechados em si mesmos é o de se construir uma cidade repleta de guetos, na qual um grupo não dialoga com o outro. “O setor imobiliário reforça essa concepção, criando espaços na cidade inacessíveis a quem não tenha título de propriedade ou não possa pagar. Mas eu percebo que boa parte da população está caminhando na direção contrária. Ela está sempre presente nos poucos parques que a cidade tem, comparece em massa quando há eventos culturais, está ocupando as calçadas da cidade, nem que seja dentro de uma lógica de consumo, tomar uma cerveja com os amigos”, diz Rolnik. “A Vila Madalena era um bairro de convivência local, hoje é um point. A região da Augusta, antes esquecida e degradada, está atraindo jovens de todos os cantos da cidade e até mesmo de outras regiões do país. Seria muito pobre se a população não pudesse ter acesso a essa diversidade.”
É consenso entre os especialistas que a única forma de livrar São Paulo do afogadiço e garantir cidadania plena aos seus habitantes é investir maciçamente em transporte coletivo, para garantir a mobilidade da população, e distribuir de maneira mais equânime os equipamentos públicos de lazer, educação e cultura, bem como a infraestrutura de saneamento básico.
Os gestores públicos conhecem bem a fórmula e repetem o discurso dos especialistas como um mantra. Mas a realidade ainda parece muito distante das promessas. “Não discuto a necessidade de obras como a Ponte Estaiada e a duplicação da Marginal do Tietê. O que eu me pergunto é se não valeria mais a pena pegar esses bilhões e investir na ampliação do Metrô, que cresce a passos de tartaruga”, diz Oded Grajew, do Movimento Nossa São Paulo. “Se todos concordam que é preciso investir em transporte coletivo, para garantir mobilidade, por que damos mais espaço para carros particulares circularem? Se há consenso de que é necessário descentralizar os investimentos, para garantir uma cidade mais justa e equilibrada, por que não vemos obras na periferia com a mesma intensidade e frequência que o centro expandido? Parece muito difícil mudar essa lógica. A periferia não financia campanhas políticas. E os governos têm de satisfazer os interesses de quem os financia.”
Fonte: CartaCapital – 28/01/10 – disponível em http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=6&i=5880 – acessado em 30/01/10.
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